segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

"Silêncio" e "medo do futuro" fazem parte da infância e adolescência de um gay


"Acho que a infância e a adolescência são as fases mais difíceis para o homossexual, o silêncio, o medo do futuro. Na adolescência, eu me lembro de que, enquanto todo mundo estava tentando decidir o que queria ser na vida, eu só tinha a certeza de querer ser gay, quer dizer, poder levar uma vida gay”, confidencia Márcio el-Jaick, autor de No Presente, livro que conta a história de André, adolescente que descobre sua orientação sexual e tem de enfrentá-la, ao mesmo tempo que, inconscientemente, tenta negá-la para se inserir no que considera ser modelo.

A seguir você lê a íntegra da entrevista de El-Jaick a A Procura por e-mail sobre o livro No Presente e as dificuldades por que passavam adolescentes gays de décadas anteriores, em que a informação não era tão acessível.

A PROCURA – Primeiro: o que o motivou escrever No Presente?
MÁRCIO EL-JAICK – Eu queria falar sobre o processo de autodescoberta da homossexualidade, esse tempo no qual tateamos em busca de respostas e temos de lidar com o fato de que somos diferentes. Acho incrível que, de alguma maneira, consigamos atravessar essa etapa sozinhos.

AP – No Presente é uma obra ficcional. Mas é possível o escritor usar referências e experiências próprias para compor suas histórias. O André tem inspiração pessoal? O que quero saber é: tem algo dele em você?
EL-JAICK – Acho que, de certo modo, sim. Quer dizer, desde questões menores como o gosto pessoal por um pintor ou um cereal até uma certa maneira de entender o mundo. Mas as experiências do André são apenas dele.

AP – Este não é seu único livro na Edições GLS. Você é gay? Se é, como conviveu com isso na idade do André? Se não, houve trabalho de pesquisa para a construção do André?
EL-JAICK – Sou gay. Acho que a infância e a adolescência são as fases mais difíceis para o homossexual, o silêncio, o medo do futuro. Na adolescência eu me lembro de que, enquanto todo mundo estava tentando decidir o que queria ser na vida, eu só tinha a certeza de que queria ser gay, quer dizer, poder levar uma vida gay. Se preciso, longe da família. Era a minha meta, fui morar fora muito por causa disso, depois descobri que não era preciso fugir, a minha família é maravilhosa.

AP – O seu livro é bem didático. Você pensa em quem vai ler quando escreve? A quem se dirige No Presente?
EL-JAICK – Não, não penso no leitor. Acho que seria uma catástrofe se pensasse. Quando escrevo, escrevo para mim mesmo. Alguém já disse que escreve os livros que gostaria de ler, talvez seja por aí. Mas, quando fui ler o No Presente pela primeira vez, me dei conta de que o livro podia ter esse papel instrutivo. E, nesse sentido, acho que se dirige a todo mundo, a quem quiser.

AP – No Presente serve também para conscientizar. Teve esta pretensão? Digo isso, porque conheço um caso em que o adolescente deu o livro para a mãe ler para introduzir uma conversa sobre sexualidade.
EL-JAICK
– Nossa, fico feliz em saber disso! É engraçado, porque cheguei a comentar com a Soraia, minha editora, que achava que este livro podia ser lido por pais de gays e lésbicas, e outras pessoas que quisessem entender o nosso universo. Mas não, não escrevi com a pretensão de conscientizar ninguém.

AP – Você escreve para público específico, via Edições GLS. Mas o No Presente poderia ser publicado por qualquer outra editora, você concorda? Mas o que falta para que isso ocorra?
EL-JAICK – O No Presente é mais universal nesse sentido do que os meus dois livros anteriores, Era Uma Vez e Matéria Básica. E também do que o Anatomia da Noite, que vai ser lançado em 2009 e cuja ação se passa toda numa noite de sábado. Acho que esses três livros interessam sobretudo ao público gay masculino. Quer dizer, gosto de pensar que vai ter heterossexuais e mulheres lésbicas curtindo, mas sei que são textos voltados para um público específico. No caso de No presente, acredito que ele alcance mais pessoas, seja menos sectarista.
Na verdade, acho que qualquer um deles poderia ser publicado por outras editoras, mas não vejo muito interesse por parte delas. No Brasil é quase nula a publicação de livros gays, daí a importância da GLS.

AP – Você é jornalista. Hoje, a internet está cheia de blogs (como este em que está postada esta entrevista), que, de certa forma, é onde gente escreve e diz o que, provavelmente, não escreveria e diria num outro meio --seja por ter de se expor ou por não ter espaço. E tem o livro, que como o jornal --dizem alguns estudiosos-- terá de se adaptar à realidade virtual. Como é que você, como escritor e jornalista, vê esse movimento?
EL-JAICK – Sou jornalista por formação, mas trabalho com tradução desde que voltei para o Brasil, em 1997. Gosto da democratização da informação, acho mais do que bem-vinda a proliferação de blogs. Mas me assusta imaginar um mundo sem o livro como o conhecemos. Por outro lado, acho quase impossível que isso aconteça, até porque não é agradável ler na tela do computador.

AP – Há 20 anos, quando adolescentes gays se entendiam homossexuais tinham dificuldade para encontrar uma publicação interessante ou outros pares com as mesmas dúvidas, aflições, enfim. Hoje se entra na internet e vê-se tantos outros a produzirem seus blogs, compartilhando medos, sofrimentos, alegrias de forma até anônima, além de o mercado editorial já ter entendido a demanda e estar produzindo material específico e de qualidade. Como você vê esse processo?
EL-JAICK – Para mim, este é o barato máximo da internet. Acho que a solidão que eu sentia aos 14, 15, 16 anos dificilmente vai se repetir hoje com alguém da mesma idade, por causa da rede. É fascinante essa possibilidade de travar contato com pessoas que estão passando pelo mesmo que você. Estou escrevendo um livro, ainda sem título, sobre um adolescente de 17 anos e senti necessidade de fazer com que a história se passasse no fim dos anos 80 --não coincidentemente quando eu tinha 17 anos-- justamente porque não saberia falar sobre o adolescente de 17 anos de hoje. O mundo deu muitas voltas de lá para cá.


Clique aqui para ler também o que A Procura já escreveu sobre No Presente.

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